06 September 2006

Assis Valente


A primeira música de Assis Valente que ouvi foi Maria Boa, cantada por meu pai em casa e na gravação do Bando da Lua. Eu tinha menos de tres anos, e é bem possível de ter escutado bem antes, só que a minha memória -hehe- não chega até lá. Claro, eu não sabia que era dele, e nem tinha noção de quem ele era, mas ele já me encantava. E no Natal? por mais que Jingle Bells zoava por todos os cantos, era de Boas Festas, de Assis Valente, que eu gostava mais. A letra é tão triste, tão triste quanto o Natal... tão contundente... tão profunda.... tão complexa... tão verdadeiro... eu chorava e chorava... Lançada pelo Carlos Galhardo em 1933, virou o nosso "hino" natalino. E escolhida por Caetano no programa "Divino Maravilhoso", na TV de São Paulo, cantando apontando um revólver pra sua própria cabeça, isso em 1968, em plena ditadura militar, pouco antes de ser preso, quando tudo que se fazia era cifrado... em código... Boas Festas, de Assis Valente:

Anoiteceu
O sino gemeu
E a gente ficou
Feliz a rezar
Papai Noel
Vê se você tem
A felicidade
pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem

Essa é uma das músicas mais lindas que eu conheço.

Assis Valente nasceu na Bahia no dia 19 de março de 1911. Sua vida pessoal foi marcada por sentimentos trágicos, mas isso em nada afetou a sua música. Suas dores íntimas foram reprimidas para dar lugar a melodias esfuziantes de rara sensibilidade, que falam sobre cenas da vida com humor, inteligência, sátira, alegria, transmitindo uma visão extremamente pessoal. Originalidade. Simplicidade e sofisticação. Verdadeiras crônicas, retratos musicais de sua época.

Ainda criança foi roubado dos pais e levado para trabalhar em regime de semi-escravidão na casa de uma família, e de noite estudava. Trabalhou como farmacêutico e teve uma breve passagem pelo circo, como comediante e declamador- dos bons!!! Mais tarde se mudou pra Salvador, onde estudou no Liceu de Artes e Ofício, exercendo um de seus muitos talentos, o desenho. Também estudou odontologia, especializando-se em prótese dentária. Era um excelente protético, e por toda sua vida exerceu esta profissão.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927 e conseguiu publicar desenhos seus em várias revistas cariocas. Em 1930 ele conheceu Heitor dos Prazeres, que o incentivou a compor e rapidamente foi tendo reconhecimento no meio musical. Seu primeiro samba gravado foi cantado por Araci Cortes, em 1932 -Tem Francesa no Morro- sátira muito divertida sobre o modo elegante de se falar o frances, língua muito em moda na época. Bonito, inteligente, bem falante, vistoso, era uma pessoa muito interessante, e foi ficando cada vez mais popular, e dá-lhe fotos, notícias, retratinhos distribuídos com autógrafo, participações em palcos, circos... um autêntico animador cultural de nossos dias. Casou e teve uma filha em 1941, mas o casamento não durou muito.

Um detalhe muito importante, que é mais que um detalhe, e mais que muito importante: foi um compositor que teve a ousadia de, num Rio de Janeiro repressor e censurante como o dos anos 30, abordar problemas do ponto de vista feminino, como em Fez Bobagem (1942), Camisa Listrada- (1937), Recenseamento (1949), entre outras.

Meu pai foi muito amigo dele, e contou que por uma época eles se viam diariamente, junto com o resto do Bando da Lua, que por sinal foi o intérprete que gravou mais músicas de Assis. E que ele era muito alegre, inteligente, simpático, tinha uma criatividade absurda, sua produção musical era copiosa, no mínimo uma música por dia, quando não duas ou tres... ele cantava a música já pronta -não tocava instrumento algum!... papai e os outros iam harmonizando.

Quando conheceu a Carmen Miranda ficou apaixonado, viraram grandes amigos e ele passou a fazer muitas músicas exclusivamente para ela. Foi uma fase muito boa: sucessos um atrás do outro na voz de Carmen: Good-bye Boy, Uva de Caminhão, Camisa Listrada, E o Mundo Não se Acabou... Quando Carmen se mudou pros Estados Unidos- 1939- ele se sentiu abandonado, mas já era bastante famoso, gravado por Orlando Silva, Araci de Almeida.. todos queriam gravar as suas músicas. Um ano depois, quando ele soube que ela viria ao Brasil, logo compos duas músicas pra sua musa: Brasil Pandeiro e Recenseamento, mas ela só gostou da segunda, ele ficou magoadíssimo... Mas foi assim que Carmen perdeu a oportunidade de gravar uma de suas obras primas, que foi logo gravada pelos Anjos do Inferno naquele mesmo ano, com extraordinário sucesso.

Mas as coisas não iam bem em sua vida pessoal. Tentou o suicídio em 1941 pulando do alto do Corcovado, sendo salvo por umas árvores e retirado pelo Corpo de Bombeiros. Tentou de novo uns anos depois, cortando os pulsos com uma lâmina de barbear. Mais uma vez conseguiu sobreviver, e mesmo passando por todo esses momentos difíceis, continuou compondo músicas lindíssimas, que viravam logo sucesso. Gastador, generoso, endividado, dividido e vivendo dramas pessoais profundos, pela terceira vez tentou o suicídio, e desta vez conseguiu: foi pra Praça Paris, aquela na Glória indo pro Flamengo... sentou-se num banco da praça... e no meio da criançada brincando ali na terra... ingeriu formicida com guaraná...

Isto foi em 1958, com apenas 47 anos...

Sua música está aí em shows, eventos, peças de teatro, cinema. Brasil Pandeiro teve várias outras regravações, sendo a mais marcante a dos Novos Baianos, em 1973. Voltou a ser extremamente popular em 1994, graças à uma campanha publicitária relacionada à Copa do Mundo. Outras regravações de suas músicas: Nara Leão- Fez Bobagem, Bethânia -Camisa Listada, Eduardo Dusek- Camisa Listada e Goodbye Boy, Clara Sandroni- Uva de Caminhão, Ney Matogrosso- E O Mundo Não Se Acabou- e tantos tantos outros... Na década de 90 estreou o musical "O Samba Valente de Assis" no CCBB, RJ. Suas músicas continuam atuais nos dias de hoje. Lembro por exemplo, que em 1999 correu um boato que o mundo iria acabar, tinha até o dia certo: 11 de agosto. Tarólogos, astrólogos, esotéricos, seitas diversas anunciaram o fim. Até mesmo quem não acreditava nessas coisas ficou cabreiro, porque a previsão era unânime, e foi muito divulgado, jornal, TV. Pois não é que a música de Assis Valente foi lembrada mais uma vez? E O Mundo Não Se Acabou (... e fui tratando de me despedir/e fui tratando logo de aproveitar/beijei a boca de quem não devia/peguei na mão de quem não conhecia/dancei um samba em traje de maiô/e o tal do mundo não se acabou...). E 'tamos nos aqui...

Adoro Assis, me identifico com suas músicas, muito por meu passado de filha do Helio, do Bando da Lua, isso tá no sangue, e tanto porque ele é simplesmente ge-ni-al!!! Canto várias dele, e nos shows de samba, canto o Cansado de Sambar, Amanhã eu Dou, Bis, Mangueira, Recenseamento, E O Mundo Não Se Acabou...

E aí vai a letra de Recenseamento. Viram quanta coisa que temos pra nos orgulhar???? Parem de reclamar da vida:)

Recenseamento
Em 1940
lá no morro começaram o recenseamento
E o agente recenseador
esmiuçou a minha vida
que foi um horror
E quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia

Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza
nós vivemos na fartura sem dever tostão
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão

Fiquei pensando e comecei a descrever
tudo, tudo de valor
que meu Brasil me deu
Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo
um pano verde e amarelo
Tudo isso é meu!
Tem feriado que pra mim vale fortuna
a Retirada da Laguna vale um cabedal!
Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia
um conjunto de harmonia que não tem rival
Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia
um conjunto de harmonia que não tem rival

1 comment:

Anonymous said...

Seu blog é uma aula de música brasileira. Obrigada.