11 October 2009

Ismael


Ele nasceu de uma ninhada de 4 gatinhos (irmão de Colombina, Fumaço -que dei- e de Mia, que morreu em maio de 2007, ver neste mesmo blog), e resolvemos ficar com ele porque era tigradinho, e estávamos sem nenhum exemplar desta cor (Tigrinha tinha morrido e Suleiman havia sumido, saiu pra passear e só fomos encontrá-lo um ano e meio depois). Era uma época em que éramos contra castrar (deixa trepar!!! é a natureza!!!), e ainda queríamos ter um gato de cada variação de cor pelo menos (amarelinho claro, amarelinho escuro, preto e branco, preto, cinza, tigrado de cinza, tigrado de marrom, branco e lá íamos nós...). Quanto mais gato melhor, e gata, melhor ainda, por causa das ninhadas!!! Então neste clima de paz e amor, há 14 anos nasceu o Ismael, filho de Violeta.

Como a gente muda! hoje em dia acho a castração fundamental e imperativa para evitar o abandono e a crueldade humana com os bichos em geral, com os gatos em particular. Depois de ter dezenas de ninhadas, cuidar dos filhotes e dá-los a pessoas de confiança, consegui me fixar em um número certo (na época eram apenas 13, que agora são oito).

Desde cedo, vi que Ismael ia ser um gatinho carinhoso, dócil e amoroso. Seu nome foi em homenagem a Ismael Silva, grande sambista que começou a fazer samba de um modo diferente, menos amaxixado como era a moda de então, e mais parecido com o samba que se conhece aqui no Rio hoje em dia. Ismael (sambista) foi o fundador da primeira escola de samba, o Deixa Falar. Quando adulto, Ismael (gato) enfrentava os gatos que vinham da rua, era forte, valente, e defendia seu espaço com muita garra. Mas como a contradição habita nos corações e mentes de todos os seres vivos, ele não podia ouvir um trovão nem de longe (ver neste blog em janeiro 2008, medo de tempestade). Quando ainda no horizonte ameaçava-se uma tempestade -podia até ser um começo, com um vento mais forte- ele começava a miar alto, chorar em forma de eeeaaaaauuuuu (quem tem gato sabe que cada miado quer dizer alguma coisa, e é tudo diferente. Nós, os humanos, passamos a identificar cada palavra de gatês. Esta é de pavor). Aí ele tratava de se esconder ou em baixo da mesa, ou num canto da casa, ou atrás da máquina de lavar. Sumia. Tinha vezes que eu chamava por ele pra colocá-lo pra dentro e não se molhar, mas nada. Tinha sumido. Gente estranha também não era confiável (podia ser veterinário, sabe-se lá...), e volatilizava-se. Na hora da vacinação coletiva então, quando eu prendo todo mundo num cômodo da casa, ele fazia um escândalo de arrepiar, parecia que estava sendo torturado.

Gato ensina muita coisa pra gente. Aprendo com eles muita filosofia, matemática, terapias orientais, acrobacia, meditação, coordenação motora, cálculo aerodinâmico, massagem aurivédica, técnicas para um sono perfeito, exercícios para desenvolver a intuição, entre outras coisas. Ismael também me ensinou na prática que quem tem medo não mama, ou vendo por um outro ângulo, o seguro morreu de velho: depois que acostumei a população felina a ficar fora de casa, ele dava valor à liberdade e quando eu o colocava pra dentro pra dar uns tiragostinhos especiais, ou mesmo pra ficar com ele no colo na cadeirabalanço vendo um filme, ele ficava ali mas lá olhando pra porta, que tinha que estar aberta. Se eu fechasse com ele dentro, entrava em pânico e começava a miar em forma de eeeaaaaauuuuu. Na cabecinha dele, ficar fechado dentro de casa coisa boa não era: ou ia ser espetado, ou manipulado, então era melhor ficar lá fora por via das dúvidas. Bem, não posso culpá-lo, pois muitas vezes era isso mesmo: uma medicação, uma limpeza de ouvido, veterinário à domicílio... mas eu ficava chateada, querendo dar uns agrados só pra ele sem ninguém ver, e ele sem querer entrar...

Pra cada gato, fiz uma letra pra uma melodia do “cancioneiro popular”. E todos sabem seus nomes e suas respectivas músicas. A do Ismael era em cima daquela música do filme Noviça Rebelde, Edelweiss. A letra é assim.
ISMAEL ISMAEL
É UM GATO VALENTE
ISMAEL ISMAEL
É MEU GATINHO FIEL EL EL EL

Quando eu o pegava no colo e começava a cantar a sua música, ele esfregava sua cara no meu pescoço e começava a me dar umas mordiscadinhas de amor. Mmmm, era muito bom! eu ficava arrepiadinha. Aquilo era característico dele, só ele fazia, e era uma demonstração tão grande de afeto entre gato e gente, um entendimento perfeito, um captar de vibrações mútuas e harmoniosas que nunca mais vou esquecer.

E com as gatas? pra ver só: Piteca e ele tinham um namoro firme, estavam sempre juntos e abraçadinhos. Depois, mesmo castrado, ele tinha um caso com a Chiquinha: quando ela aparecia (ela fica lá pelo quintal) e com seu cheirinho que ele sacava logo, pronto! começava a miar num ritual sestroso, e cheirava, se esfregava nela, e ela também tinha essa atração por ele. Dormiam juntos muitas vezes na mesma caixinha, realmente se amavam. Aqui primeiro ele com Piteca, depois com Chiquinha:




Semínima, minha gata-mór era sua melhor amiga. Viviam juntos e também dormiam juntos na mesma cadeira, na mesma caixa. Eram parecidos de temperamento: gato-gente boa, da paz... tenho inúmeras fotos dos dois juntinhos, pintei até uma aquarela. Ei-los:


Pois Ismael de uns tempos pra cá vinha tendo umas coisas estranhas. Era um dedo que deu bicheira e teve que ser amputado porque não cicatrizava, umas coisinhas aqui, outras ali. Comecei a notar que ele pouco saía de seu caixotinho, parecia meio triste, sei lá, e em fevereiro deste ano descobri que ele estava ficando cego! mas mesmo assim se interessava pela Chiquinha, por comida e quitutes, banho de sol, estes simples prazeres da vida felina. Quando foi terça agora, quando cheguei tarde de noite da aquarela, ele não saiu lá de trás, e quando fui ver, estava com as patas de trás paralizadas!!! Que visão horrorosa. Chamei um taxi correndo e fui pra veterinária. Meia-noite estava lá. Dr. Murad disse que talvez fosse ser hérnia de disco, mas como ele era cego, o itinerário dele era caixinha, comida, água, xixi e voltava pra caixinha, então seria difícil ser tombo, ou pulo mal dado, e me aconselhou vir no sábado pra falar com o veterinário neurologista que atende só neste dia, ele poderia me dar um diagnóstico mais preciso. Passou um corticóide e fiquei de ligar pra ele no dia seguinte.

Fiquei inconsolável. Apesar de ele me acenar com uma reversibilidade, eu olhava e pensava- isso tá muito ruim. Cego, idoso e agora paralítico: o rabo e as pernas de trás estavam inteiramente inertes, pendurados. Por um dia meu gato foi aguentando e sofrendo. Como ele foi sempre tão limpinho, quando queria fazer xixi, saía de sua caminha, se arrastava prum canto e fazia deitado. Sofria calado, com um olhar tão doce...

Sou muito fraca pra sofrimento de bicho, chego a passar mal. Eis que na quinta-feira de repente Ismael começou a ter uma hemorragia: era muito sangue saindo por trás. O céu diluviando, sem um táxi disponível, Santa Isabel me socorreu e me levou no carro dela para a veterinária (valeu, Bel!!!! sem palavras!!!), daí interna, medica e espera. Diagnóstico: a paralisia afetou o aparelho urinário e intestinal, ele já não estava conseguindo fazer suas necessidades, tinham que apertar pra drenar. Com muita tristeza fui vê-lo na internação na sexta, ele lá deprimido tomando soro, sem muita reação. Conversei muito com ele, falei pra ele o quanto eu o amava, cantei pra ele (reconheceu sua música) e, meio que já sabendo, senti que estava me despedindo. No sábado conversei com o neurologista que o examinou e confirmou o que todos já desconfiávamos: era uma doença dos nervos, e que o quadro era irreversível. Pela primeira vez, tive que assinar uma autorização para a eutanásia, convencida que era a melhor solução pra ele. Eu também, antes de conversar com o médico, estava achando que era a única solução, não dava pra continuar este sofrimento. Mesmo assim, na hora foi estranho assinar. Uma sombra tomou conta de mim... fiquei meio enjoada... fui dar uma volta pela praça, e só depois de uma hora voltei para pegá-lo, dentro de sua caixinha.

Quem tem bicho sabe a dor que é quando morre um. Não interessa se temos outros, aquele é único, aquele tem contigo uma relação singular, é que nem com amigo: cada um preenche um pedacinho do que é você, cada um é uma relação diferente, uma parte de você que outro não substitui.

E falando em amigo, preciso dizer que Milton me acompanhou em todas estas idas ao veterinário, inclusive porque ele era o co-responsável por Ismael, e tinha um carinho imenso por ele desde que era filhote. Milton foi fundamental principalmente neste último dia, porque eu não lido bem com a morte. Não consigo olhar pro morto, não quero ver porque depois fica a imagem na minha cabeça aparecendo sem mais nem menos me assombrando. Com gente também, não dá pra olhar. Sou muito impressionável. Então foi ele que carregou a caixinha, e depois teve a coragem de enterrá-lo.

Enquanto ele cavava lá em cima, aqui em baixo me deu uma louca de dar uma geral na cozinha (chão inclusive), lavar toda a louça e fazer um almoço, que acabou sendo o jantar. Catarse. Me catar. Chovia o tempo todo (desde quinta-feira), a terra estava mais fofa do que o costume, e estava frio. Quando achei que já podia subir ao quintal, fui e enfeitei sua cova. Plantamos uma folhagem e umas maria-semvergonhas. Ficou bonito. Aliás, toda a floresta estava bonita, bem verde e molhada, brilhante. Silencioso. Um verdadeiro templo. E lá ficamos por um bom tempo, eu e Ismael. Meu gato fiel.