28 October 2006

Rogerio Duprat


Do site do CliqueMusic e jornal O Globo:

"Morreu na tarde desta quinta-feira (26), Rogério Duprat, maestro que rompeu a barreira do erudito com o popular no movimento musical conhecido como tropicalismo e que reuniu nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, no final da década de 60. Duprat foi também responsável pelos arranjos de diversos discos do grupo Mutantes, da Rita Lee.

O músico estava com 74 anos, sofria de mal de Alzheimer e de um câncer na bexiga descoberto recentemente. Duprat estava internado desde o dia 10 de outubro no Premier Residência Hospital (zona sul de São Paulo).

O velório aconteceu no Museu da Imagem e Som (MIS), em São Paulo. O corpo do maestro, que tinha uma esposa e três filhos, deverá ser cremado amanhã no Crematório da Vila Alpina.

Nascido no Rio de Janeiro, começou a estudar violoncelo no começo da década de 1950, período que integrou a Orquestra Sinfônica Estadual. Mas seus primeiros passos na música se deram ainda bem jovem, quando tocava "de ouvido" cavaco, violão e gaita de boca. Mudou-se para a São Paulo em 1955, onde passou a ser um dos destaques da Orquestra Sinfônica Municipal. Foi um dos fundadores e diretores da Orquestra de Câmara de São Paulo e o idealizador do movimento Musica Nova em 1961, junto com Damiano Cozzella, Willy Correia de Oliveira, Gilberto Mendes e Régis Duprat. Viajou para Europa com o maestro Júlio Medaglia, onde teve aulas com o compositor Karlheinz Stockhausen - curiosidade: um de seus colegas de "classe" era Frank Zappa.

Começou a compor trilhas para longa-metragens do diretor Walter Hugo Khouri, como “A Ilha”, “Noite Vazia” e “Corpo Ardente” e a se aproximar dos músicos populares, principalmente dos tropicalistas, liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Para Gil, compôs o ousado arranjo para Domingo no Parque, que mais tarde lhe daria o prêmio de melhor arranjador no Festival de Música da TV Record, em 1967. No ano seguinte, ao lado de Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão, Torquato Neto, gravou o histórico disco “Tropicália”, compondo arranjos para várias canções do álbum, como “Baby”, “Panis Et Circencis” e “Geléia Geral”. Fez arranjos para canções de Chico Buarque (“Construção/Deus Lhe Pague”), Jorge Ben Jor (“Descobri que Sou um Anjo”) e trabalhou em vários discos dos Mutantes, sendo decisivo para a mudança de sonoridade da banda paulistana. Passou a dedicar-se a produção de jingles e aos poucos abandonou o mercado musical por problemas de surdez, causados pelas intermináveis horas de estúdio, e mudou-se para um sítio em Itapecerica da Serra, interior de São Paulo. Só voltou a atividade musical na década de 90, compondo arranjos para os discos de Lulu Santos e Rita Lee.

Duprat foi o grande responsável pelo rompimento da barreira entre erudito e popular, consolidando-se como figura ímpar da música brasileira".

Fiquei triste com a notícia quando li. Não sabia que ele estava doente. Poxa, ele ainda era jovem- 74 é jovem pra morrer hoje em dia- e me lembrei quando o conheci em 69 ou 70 numa reunião em São Paulo quando eu era da Equipe Mercado. Fiquei nervosíssima em ele estar ali diante de mim, como a gente sempre fica diante do ídolo... pois o disco "Tropicália" fazia parte da minha trilha diária, noturna, vesperal, matutina, sonhando dormindo ou acordada, em pé, sentada, aflita ou relaxada, eu sabia de cor, e aqueles arranjos revolucionários, assim como quase tudo do movimento tropicalista já faziam parte da minha pessoa. Bem, foi por causa do Tropicalismo que comecei a cantar. Deu um troço doido em mim, virei pelo avêsso. Parecia que de repente eu estava entendendo tudo na vida. Acendeu-me a luz, senti que aquela era minha turma, e me senti inteiramente identificada com ela: ah.... então é isso... eu sempre soube, mas não tinha consciência...

O disco é genial. A começar pela capa, Rogério ele próprio no canto esquerdo do banco faz de um penico uma xícara de chá. Os Mutantes atrás, ao lado de Tom Zé, com a "mala de couro forrada de pano forte bem cáqui" (No Dia Em Que Vim Me Embora, de Caetano), recém chegado da Bahia. Gil no chão, segurando a foto de Capinam, ausente na foto. Acima, o Caetano faz a mesma coisa com a foto de Nara Leão, também ausente. E do lado direito do banco, Gal e meu saudoso amigo Torquato. Todos, fora o Rogério, parecem ter de 15 a 20 anos de idade. Tem uma moldura verde amarela azul, fundo e chão de verde ardósia, e pronto. Tropicália na vertical de um lado, do outro Ou Panis et Circenses. Todo mundo sério. Predominam as roupas psicodélicas.

Vamos às faixas. A primeira é Miserere Nobis, do Gil e Capinam, canta Gil. Começa com um órgão de igreja, sininho, pra bruscamente interromper pras guitarras em ritmo, flautas, fagotes em contracanto, e final bombástico (me lembra até a Abertura 1812 do Tchaikovski, que tem canhões) de uma trompetada e climas de banda militar. Ora pro nobis. Tomára que um dia sim um dia não na mesa da gente tem banana e feijão.

A segunda, Coração Materno, de Vicente Celestino, canta Caetano. Um cello e tambor, meio bala de canhão e também e principalmente, a bomba de um coração batendo. Clima expressionista. A letra é um dramalhão só: a história de um "campônio" que, pra provar sua paixão à amada, e a pedido desta, arranca o coração de sua "pobre mãezinha ajoelhada a rezar", mas ao voltar, cai, quebra a perna e coração voa longe. De repente ouve-se uma voz: "vem buscar-me filho, aqui estou, vem buscar-me que ainda sou seu"... O arranjo prepara todos esses climas carregando na emoção e Caetano cantando é lindo. Naquela época muita gente não entendeu o porquê desta música (considerada "kitch"- nova paravra para brega, aliás Nelson Gonçalves, Angela Maria, essa turma estava bem por baixo) ter sido uma das escolhidas pro disco, mas Tropicalismo era exatamente isto: não ter preconceito algum, assumir todas as nossas influências culturais, desde o sertanejo, o brega, o rock, a jovem guarda. Isso somos nós.

A terceira, Panis et Circenses, de Gil e Caetano, canta Os Mutantes. Esta é.... esta é.... confesso que fico com lágrimas nos olhos quando a ouço. E a pele arrepia. Esta me é especial. Muito especial. Começa com um lalalalá côro mutante, o órgão fazendo a base numa nota só ininterrupta, guitarra dando uns arpejos. Pára tudo. Respiram e entra a letra, que é uma das mais lindas que já ouvi. Simplérrima, infantil, essa melodia em arpejo ascendente, tônica, terça, quinta e... a inesperada inusitada bendita nona!!! vai-se repetindo e é quase isso só, e é tanto tanto tanto... é tão pra cima, tão forte, é um hino mantriático psicodélico, o arranjo muito louco, uma coisa que parece um pato (sintetizador? guitarra?) tocando no contratempo (isso antes do reggae!!). Quando entra a segunda estrofe (mandei fazer/de pura aço luminoso punhal...) entra uma trompete inteiramente insandecido, tresloucado, fazendo um contracanto pungente e arrebatador. O timbre e a participação especialíssima lembra ao longe Penny Lane, dos Beatles (aliás, diziam que o Duprat era o "George Martin"- arranjador dos Beatles em Seargent Pepper's Lonely Hearts Club Band e muitos outros- tropicalista, e que este disco era o Seargent Pepper brasileiro!!!). E segue o arranjo: no meio da música, há uma "falta de luz" e é como se o disco fosse parando com a agulha encima. Silêncio. Uma nova introduçãozinha com flautas, algo com som de cravo, e... e explode o final, que começa num andamento lento e vai acelerando: "essas pessoas na sala de jantar essas pessoas na sala de jantar", repetindo repetindo obsessivamente, todos cantam, todos tocam, e o tresloucado trompete se contorcendo, se dilacerando, num crescendo apoteótico. De repente pára tudo, e barulho de talheres, gente conversando- me passa a salada aí...o pão por favor... só mais um pedacinho...

Olha, isso JAMAIS tinha sido feito antes. Era que nem ouvir, sei lá, uma música vinda de outro planeta... mas pra mim, era contraditório, pois apesar de ser uma tremenda novidade, me era extremamente familiar, vinha do MEU planeta, e aquela era a MINHA linguagem. Eu vinha de uma formação clássica de piano, tendo ouvido e tocado muuuuita música erudita, que inclui, claro, os contemporâneos, muito doidos, serial, dodecafônico... A música popular até então era extremamente "comportada": previsível, com a métrica certinha, começo meio fim... e os arranjos deste disco eram uma mistura de popular com contemporânea.

E a letra? é linda demais. E era o que eu -nós- meus amigos, minha geração- estávamos vivendo, existencialmente e politicamente: eu quis fazer/minha canção iluminada de sol/.... mandei plantar/folhas de sonho no jardim do solar/.......mas as pessoas na sala de jantar/são ocupadas em nascer e em morrer. A liberdade que queríamos, a mudança no mundo, e aquelas "pessoas na sala de jantar" e no govêrno nos impedindo de realizar. Tudo, claro, nas entrelinhas, por causa da censura.

A quarta faixa é Lindonéia, de Caetano e Gil, canta Nara afinadíssima, com aquele canto perfeito, apolíneo, acompanhada de uma verdadeira orquestra, belíssimamente arranjada, compassos e breques, um bolero de surpresas, um samba-canção latinoamericano.

A quinta é Parque Industrial, de Tom Zé, canta Gil, Caetano, Gal, Os Mutantes e o próprio Tom Zé. Uma crítica inspiradíssima, bem humorada do dito "progresso" ("o avanço industrial vem trazer nossa redenção"som de banda de música, voz de ciranças, bandeirolas, grande festa em toda nação) e ainda dá uma alfinetada na "colonização cultural" vinda dos EUA: "o que é made, made in Brazil". A letra é muito boa, e cada um vai se intercalando ao cantar. O arranjo reproduz uma "grande festa em toda a nação": banda de música com direito a tuba, voz de crianças, naipes de sopros, trompete em wahwah com surdina.

A sexta faixa é.... Geléia Geral, de Gil e Torquato, canta Gil. Esta é outra das minhas preferidas, essa letra é simplesmente ge-ni-al, letra de Torquato, que depois assinou uma coluna no jornal Última Hora com este título. O arranjo começa com a guitarra quente num baião contraponteando com o baixo deslizante. Pela música toda, os sopros são soberanos- imperam marcando tempos fortes meio como um baixo quadrado, fazem rítmo. No meio dessa festa a levada muda e a letra é declamada, aí aparecem "áudios" da letra: bateria escola de samba ("destaques da Portela"), citação da música de Sinatra "All the Way" ("um LP de Sinatra"). Essa música é tão forte, tão poderosa, um verdadeiro terremoto. O "sentimento" tropicalista é exatamente isto que tá letra, a sua mais perfeita tradução. Genial. Um hino.

A sétima é Baby, de Caetano, canta Gal e Caetano. Mmmmm.... acho que também choro com esta, porque era esta que tocava na rádio. Muito. E ouvia-se muito rádio naquela época. E me lembro de estar em casa (ainda morava com os meus pais), de estar na rua, de estar namorando, de estar passeando, de estar estudando, de estar na praia, de estar na cantina na Faculdade de Arquitetura, de estar no carro de algum amigo, de estar levando o Kiko nosso basset pra passear, de estar comendo com a família, enfim.... tudo ao som dessa música que tocava no rádio. Essa, de todo o LP, era o menos "estranho" para quem achava que o Tropicalismo era um bando de hippies sujos cantando letras sem sentido. Meu pai (olha que ele era músico revolucionário na sua época) detestava, não conseguia entender, nem eu explicando. Mas adorava a VOZ da Gal, com toda a razão, aí "aguentava" ouvir até o fim, sem mudar de estação :) A música é uma marcha-rancho em rítmo ternário. O arranjo é delicado, belíssimo, começa com o baixo, depois o violão fazendo a levada, entra a batera, violinos celestes e diabólicos fazendo uma cama deliciosa macia gostosa sensual e quando entra a VOZ da Gal, é êxtase. Caetano no final faz vocal com ela, cantando "oh, please stay by me, Diana", mega sucesso de Paul Anka. Puro tropicalismo. Essa música -Diana- do Anka foi da década de... 50. Eu era menina, tinha o disco 78, e ouvia o dia todo, pensando que poderia ser pra mim. Quando o Caetano saiu cantando o meu nome, tive a certeza:)... detalhe é que ele não me conhecia ainda... e foi assim que gamei.

A oitava é Três Caravelas, que é uma versão "cachonda" de João de Barro -Braguinha- de Las Tres Carabelas (de A.Algueró Jr/G.Moreu). Duprat fez uma salsa quase convencional, e Caetano e Gil cantam misturando a letra em castelhano e em português. Divertidíssimo.

A nona é outra que possivelmente deixa meus parcos cabelinhos em pé. Enquanto Seu Lobo Não Vem. De Caetano, canta Caetano. Extraordinária. Jóia rara. Um hino. Homenagem a nós que participamos das passeatas contra a ditadura. Belíssima. O arranjo é cheeeio de detalhes, primoroso. Começa com um simples agogô. Depois um côco. Violão numa levada andante, constante, forte, denso, ininterrupta. Este violão vai ser a base da música toda, tem apenas dois acordes que se repetem do começo ao fim, obsessivo. Cria tensão, Caetano cantando tranquilo. Percussão leve, dividindo cada tempo em quatro, criando uma espécie de tensão. Flautas, trompetes gorgeando. Ao longe, a voz de Rita, bem ao longe ecoando- "os clarins da banda militar, os clarins da banda militar, os clarins da banda militar..." Entra um bumbo baixinho, (Estação Primeira de Mangueira)... Trompete toca o primeiro verso da "Internacional" ("vamos passear escondidos"). Ouve-se algo como uns tiro, muito misturado, quase imperceptível. Já no final, o bumbo se torna presente até o fim. Conseguiu passar na censura, está totalmente em código. Cê não ficaria com lágrimas nos olhos se fôsse eu???

A décima é outra "bomba" do Caetano e Torquato, canta Gal: Mamãe Coragem. O filho saindo da casa paterna. Eu estava justamente passando por isso na época, e com muito sofrimento, porque NINGUÉM saía assim impunemente da casa dos pais sem ser pra casar. Naquela época. Mulher então, nem se fala. Era deserdada. "E não se pronuncia mais o seu nome nesta casa"...

Começa curto e grosso com uma sirene de polícia (não podia deixar de ter em alguma música, era um ruído aterrador constante no nosso dia-a-dia). Violão marcando um 3-4-1....3-4-1 com baixo.... percussão metálica fazendo chhhhhhhh. Flautas fazendo a melodia com a voz em terças. Um interlúdio com muita flauta interrompe a levada para a letra "ser mãe é desdobrar/fibra por fibra os corações dos filhos/ seja feliz/seja feliz" para que ela esteja em especial evidência. Letra de Torquato, meu ídolo. Um ano depois ficamos amigos.

A penúltima do disco é Bat Macumba, de Gil e Caetano, canta Gil e côro de todos. Uma brincadeira com a letra: enquanto o coro canta a frase (batmacumba iêiê, batmacumba obá), Gil vai brincando com a palavra batmacumba, cada vez tirando uma sílaba (batmacum/batman/bat/batman/batmacum.....). O arranjo é com uma esperta viola caipira de primeiríssima ponteando, tumbadoras, divertidíssimo.

Hino Do Senhor do Bonfim é a última, com a participação de todos. Solenidade apoteótica. Pratos. Trompetes. Côro. E com essa se encerra um dos melhores discos que vivi.

Teria havido o Tropicalismo sem o Rogério Duprat? Teria, pois havia o Caetano e Gil. Mas com certeza, teria sido BEM diferente.

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