19 January 2008

Roberto Carlos em Detalhes


Acabei de ler Roberto Carlos em Detalhes, livro "proibido" (pelo próprio) de Paulo Cesar de Araújo. Sensacional. Lê-se sem querer parar. O título é perfeito, pois o Rei é detalhado detalhadamente em detalhes mínimos e íntimos. Não há uma única palavra falando mal do homenageado, pelo contrário, foi feito por alguém que o idolatra, por isso é ainda mais estranho que RC tenha tirado os livros de circulação. Durante 15 anos o autor pesquisou não só sobre o RC, mas também sobre tudo tudo tudo que pudesse ter a ver com ele... tudo, e ainda mais sobre o ambiente musical, fonográfico, televisivo, produção cultural... um verdadeiro documentário focando principalmente os anos 50 a 80!! O livro chegou a ser lançado, mas rapidamente tirado de circulação, com a questão indo a juízo, vencendo o RC. Rapidamente foi lançado na internet, existe o exemplar virtual, mas... quem vai ler 500 páginas assim? bom é folhear, ver as fotos, sentir o peso (um tijolão!) do exemplar nas mãos. Livro é livro, insubstituível.

Uns dizem que é porque ele relata o episódio do acidente, mas não acho. Não seria segredo pra ninguém mais esta tragédia. E o autor conta o caso com muita sensibilidade.

Foi no feriado do santo padroeiro de Cachoeiro, a cidade estava em festa, desfiles, músicas, bandeiras, discursos...Zunga (seu apelido de infância) e mais a Fifinha, uma amiguinha, se juntaram à multidão pra ver um desfile escolar. Uma velha locomotiva foi fazer uma manobra perto de onde estavam as duas crianças, uma professora se assustou e empurrou a menina pra calçada, Zunga se assustou com o movimento brusco daquela pessoa desconhecida, e caiu no trilho. Nisso a locomotiva foi chegando e avançou por cima da perna dele. Gritaria, corre-corre, ele ali deitado, se esvaindo em sangue. Nem deu tempo de esperar ambulância, um rapaz pegou o paletó de linho branco e deu um garrote na perna da criança. "Até hoje me lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu desastre", diz Roberto, que desmaiou logo depois que foi socorrido. A professora, querendo evitar uma tragédia com duas crianças, provocou um acidente com uma.

Desde criança ele já mostra dotes musicais, se apresentando em festinhas, clubes e na radio local. Ele vem pro Rio pra tentar a sorte, e a família resolve depois se juntar a ele, na casa de uma tia em Niterói. Depois se mudam pro Lins, onde entra num curso de datilografia e conheceu Otávio Terceiro, que trabalhava com um produtor de TV, que chama o RC pra cantar no programa Teletur, segundas à noite na TV Tupi. Apesar de já ter se apresentado na TV, esta foi a sua estréia profissional, aos desesseis anos de idade, em 1957. Ganhou 200 cruzeiros velhos e deu tudo à mãe, pois era muito dinheiro pra ele administrar!!

É tudo contado nos mínimos detalhes, e vira um filme diante dos olhos, e coisas que só ouvi falar, mas não sabia como tinha sido, e nem havia onde procurar informação a respeito: por exemplo, o movimento musical que nasceu na Tijuca, composto de gente que depois ficou famosa. Quem os apresentou foi Arlênio Lívio, seu amigo do Colégio Ultra (onde cursavam o Artigo 91- uma espécie de supletivo, ginásio em 6 meses), e passou a frequentar o Bar Divino, na Rua do Matoso, onde conheceu Jorge Ben (do Rio Comprido), os rapazes dos Fevers (do Méier), outros do Renato e seus Blue Caps (da Piedade), Sebastião (depois Tim) Maia, que liderava um quarteto vocal chamado The Sputniks (o satélite russo que tinha sido lançado, que inspirou tb o nome do filme brasileiro O Homem do Sputnik), e os ensaios eram na casa do pai do Tim, com direito a lanchinhos nos intervalos, quando seu Altivo Maia os brindavam com rabanadas feitas por ele mesmo.

Da primeira vez que RC ouviu a batida do Tim tocando Long Tall Sally, ele confessa: "ouvi atentamente, fui pra casa e fiquei tocando a noite inteira. Aquilo mudou a minha forma de tocar (Tim vinha da escola do Little Richard, James Brown, artistas da Motown gravadora americana. Soul music). RC começou então a fazer parte do The Sputniks, mas curiosamente, quem era o crooner principal era um outro integrante, porque nem o Roberto nem o Tim tinham uma pronúncia muito boa no inglês. Mas RC não ficou muito tempo no grupo, o suficiente pra conseguir se destacar e se apresentar sozinho no programa na TV Tupi Clube do Rock, de Carlos Imperial terças a a uma da tarde.

E o começo da amizade com Erasmo foi quando, numa tarde de abril de 58, RC precisou da letra de Hound Dog, sucesso de Elvis Presley, e este mesmo Arlênio conhecia um cara que "sabia tudo sobre o Elvis"- era o Erasmo (Esteves, ainda não era Carlos)- e fez o contato. A parceria só viria a se concretizar 5 anos depois, mas foi aí que eles selaram sua amizade que dura até hoje (a parceria tb).

João Gilberto foi uma verdadeira revelação pra RC: o fraseado sincopado do cantor e os incríveis jogos ritmicos entre voz e violão deixaram-no encantado. "Nunca tinha ouvido nada parecido antes. A forma de ele cantar, a colocação da voz, a emissão, a afinação, a divisão, tudo ali era perfeito. Quando ouvi João Gilberto, eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso". Este acontecimento deu a RC mais ânimo pra continuar a tentar a carreira artística. Pois com sua voz pequena, porém afinada e bem colocada, RC poderia também ser um astro de música popular. Então foi ser crooner na Boite Plaza, tendo como maior influência o João Gilberto, com repertório de bossa-nova e samba canção. Quem o acompanhava ora era o grupo do guitarrista Bola Sete, ora o grupo do tecladista Zé Maria, ora pelo conjunto do saxofonista Barriquinha, cujo pianista era o João Donato, que aconselhava RC a balançar mais: "tá legal, afinadinho, mas tem que ter mais balanço". E uma noite, aconteceu o encontro entre o criador e a criatura. RC ficou nervosíssimo, e João fala ao autor: "lembro quando entrei na boate, Roberto estava cantando Brigas Nunca Mais. Achei o menino muito musical".

Depois de uma verdadeira peregrinação às gravadoras, conseguiu finalmente na Polydor, um compacto simples estilo bossanovista. Foi o primeiro de sua geração a gravar um disco, e o primeiro a registrar a influência de João Gilberto. Não fez o menor sucesso, e finalmente chegou à conclusão de que imitar JG era uma furada, nunca ia chegar ao sucesso neste caminho. João era único. Continuando a cantar nas boates, rádios e circos, estes às vezes de lona rasgada, dias de chuva, e quase ninguém na platéia. Gravou uns outros compactos, mudou de gravadora, o rock começou a invadir o planeta, apareceram The Beatles. Numa noite no ônibus, vindos de uma festa em Copacabana, Erasmo mostrou a ele uma versão que estava fazendo pra Splish Splash, cantada por Bobby Darin, e RC adorou, gravou e pronto!- foi o seu primeiro grande sucesso, mas ainda não em âmbito nacional. Esta gravação foi importante porque vinha com uma sonoridade nova, arranjos modernos ao estilo Beatles, sem aqueles inevitáveis e datados dos anos 50 solos de sax característicos daquele período. É verdade que em músicas posteriores ele chegou a usar o solo de sax, mas esta gravação de Splish Splash foi um marco, super-antenado com a modernidade.

Mas a turma começou a sacar que ficar fazendo versões de músicas estrangeiras não ia levar a lugar nenhum, o negócio era compor suas próprias canções. Roberto Carlos considera o Parei na Contramão sua "moedinha nº 1", sua primeira parceria com Erasmo Carlos. Foi um sucesso, mas ainda assim só atingiu a garotada interessada em rock, mas não havia dúvida: o caminho era por aí. Na sequência, o retumbante sucesso, gravado por Ronnie Cord- Rua Augusta, com temática de carros, garotas e velocidade. Composta por ninguém mais ninguém menos que o pai do cantor, Hervé Cordovil, maestro e arranjador. Ora, o autor não era um jovem roqueiro, mas um veterano da música popular: foi parceiro de Noel e Lamartine Babo entre outros. Se aquele sucesso foi composto por um veterano de samba, por que eles, jovens, com o rítmo na veia, não poderiam fazer também?

Começaram a surgir cantores-compositores: Demétrius, Baby Santiago, Getúlio Cortes (um dos compositores que mais fizeram música pro Roberto). Em 1964, Roberto e Erasmo compuseram É Proibido Fumar, clássico do rock brasileiro. A partir daí, foi a escalada para o sucesso: contratado da CBS, com Edy Silva na divulgação, não parou mais.

Paralelamente à história do Rei, o livro analisa com detalhes a hístoria do rádio e o comêço da TV, a época dos festivais, a briga truculenta pela audiência, é pra se ler sem conseguir parar até chegar no final. Por exemplo, uma passagem importante, que pouca gente tem idéia, é sobre a "guerra" que se travou entre a turma da recém-formada sigla MPB contra o pessoal do Iê-Iê-Iê (me lembro bem desta guerra, eu era fã do RC e estava na Faculdade de Arquitetura, época de passeatas estudantis, assembléias da UNE). Aliás, foi graças ao Roberto Carlos que se institucionalizou esta sigla. Foi por causa do seu enorme sucesso que o ambiente musical popular de então se armou e se defendeu atrás desta sigla, que tinha um caráter marcadamente nacionalista, surgindo como uma bandeira de luta contra um outro tipo de música popular "não-brasileira", confundindo o rock nacional com alienação política, entreguismo cultural. Estava-se em plena ditadura militar. Realizavam-se reuniões onde pregavam-se idéias de arte nacional-popular, cultivadas desde antes do golpe militar desde 1961 no CPC (Centro Popular de Cultura), ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes). O CPC reunia artistas de teatro, música, cinema, literatura, artes plásticas, e seu projeto era a construção de uma cultura nacional, popular e democrática, por meio da conscientização das classes populares. Partia em defesa de nossas tradições musicais contra a internacional americanização. A Jovem Guarda sofreu um patrulhamento e uma dura perseguição, como se fosse um terrível inimigo.

No meio disso tudo, aconteceu o I Festival da TV Excelsior, Ellis passou a ser a maior estrela da música brasileira com o sucesso do seu programa O Fino da Bossa na TV Record e o seu LP Dois na Bossa (com Jair Rodrigues) em 65. Ellis viaja no fim do ano e quando voltou, encontrou o cenário inteiramente transformado. Radicalmente!! 180 graus!!: Quero Que Vá Tudo Pro Inferno estourava estrondoso o dia inteiro em todas as rádios. O mega-sucesso nacional de Roberto e Erasmo, atingindo os brasileiros de norte a sul, de todas as faixas etárias, de todos os estilos musicais!!!! O programa da Jovem Guarda (do Roberto) estava liderando as pesquisas de audiência, o que fazer? Formou-se um movimento e uma marcação ferrenha contra. Foi afixado uma proclamação nos bastidores do Teatro Record, onde lia-se o seguinte texto: "Atenção pessoal: o Fino não pode cair. De sua sobrevivência depende a sobrevivência da própria música moderna brasileira. Esqueçam quaisquer rusgas pessoais, ponham de lado todas as vaidades e unam-se todos contra o inimigo comum: o Iê-Iê-Iê". A briga foi feia, o clima era de tensão, e o assunto gerava polêmica na rua, nas universidades, dentro e fora do meio musical. Naquela época, era que nem futebol: se ce não torcesse pelo mesmo time, o pau comia.

Outras informações interessantes: uma das mais importantes referências musicais de Roberto Carlos foi a cantora e compositora Dolores Duran, que era atração no Little Club no Beco das Garrafas, e ele no seu primeiro emprego de crooner na Boate Plaza. E a amizade com Claudete Soares, que defendia RC e gravou Como É Grande O Meu Amor Por Você. E Sylvinha Teles (tem um bom trecho falando sobre ela), que foi a primeira pessoa da MPB a cantar e gravar Roberto Carlos nos anos 50, enfrentando uma vaia estrondosa no Teatro Paramount.

Um ótimo capítulo também é sobre a imagem de rebelde que ele no início passou: não queria nada com casamento, mandava tudo pro inferno, infringia leis de trânsito, vai fumar mesmo sendo proibido, fala sobre a garota independente e liberada em É Papo Firme e por aí vai. Só o fato de usar cabelo comprido era tido como uma afronta à ordem, à família e à moral vigentes, e nisso o RC foi dos primeiros. Também foi de muita audácia ter se casado com Nice, uma mulher mais velha, desquitada e mãe de uma filha, sem se importar com os que diziam que isto iria arruinar a sua popularidade com as fãs. E também ficar 11 anos sem casar com a Myriam Rios.

Os capítulos são estes, na ordem do livro:
1. Força Estranha no Ar (RC e o rádio)
2 Little Darling (RC e a turma do suburbio)
3. Fora do tom (RC e a Bossa Nova)
4. Daqui pra frente tudo vai ser diferente (RC e o rock)
5. Jovens tardes de domingo (RC e a televisão)
6. Parei na Contramão (RC e a MPB)
7. O mais certo das horas incertas (RC e Erasmo Carlos)
8. Quando eu estou aqui (RC e o palco)
9. Ilegal, imoral ou engorda (RC e a transgressão)
10. Vou cavalgar por toda a noite (RC e o sexo)
11. Todos estão surdos (RC e a política)
12. Como vai você (RC e os compositores)
13. Amante à moda antiga (RC e o amor)
14. Uma luz lá no alto (RC e a fé)
15. Faço no tempo soar minha sílaba (RC e o sucesso)

E pra encerrar, a definição de Roberto Carlos dado por Jorge Mautner: "é o poeta popular das cidades do Brasil. Provinciano e puro, com ingenuidade de caiçara e urbano, fatalista e arisco, doce e nostálgico, rebelde e submisso, puritano e sexy, ídolo e cidadão humilde, eis o grande rei, situado exatamente na fronteira do permitido e do não permitido".

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