13 June 2011

cinco meses


Recebi ontem fotos de uma amiga. Data das fotos: junho de 2008. Lugar: um sarau-almoço na casa do Nilo. Dentre elas, duas me emocionaram às lágrimas: Mario e eu tocando a quatro mãos. Tínhamos feito o show no Valansi havia um mes, estávamos alegres e pensando nos próximos. E então tocamos, tocamos neste dia, foi muito bom, numa casa maravilhosa, gente interessante, uma tarde inesquecível. Dois anos e meio depois, acontece a tragédia na Região Serrana e Mario morre. Quem poderia prever? quem poderia imaginar? uma pessoa tão cheia de energia e disposição. Que tocava o dia inteiro, só pensava naquilo. O piano. Seu eterno companheiro de todas as horas. 

Estas fotos me fizeram lembrar de muita coisa (as fotos servem pra isto mesmo, voltar no tempo). Seus sapatos pretos, sua roupa preferida: calça e camisa de manga comprida arregaçada (sempre sempre), tecidos de jeans tipo brim, aquele azul (não índigo, não ultramar, talvez prússia ou cobalto). Seus cabelos cuidadosamente cortados na frente, mas compridos atrás. 

Nossa cumplicidade.

E suas mãos. Mario era todo grande, quase 2 metros de altura, e as suas mãos, é claro, tinham que acompanhar a imensidão restante. Pois eram grandes. Pondo a minha colada à sua, seus dedos começavam onde os meus acabavam. Um pouco de exagero, só pra dizer que eram realmente acima da média. Alcançar uma décima era brinquedo pra ele, fazia como eu faço uma quinta, e disto ele se aproveitou no seu estilo tão pessoal de tocar.

Mas suas mãos eram mais do que isto: tocavam nas coisas de uma maneira quase mágica de ser. Suas mãos eram bonitas, de movimentos harmoniosos. Faziam transparecer sua extrema sensibilidade, que o tornava uma pessoa tão especial. Eram fortes, tinham carisma, marcavam presença. Eram mãos que mereciam ter sido eternizadas, esculpidas em mármores, de tão belas. No piano, faziam o que queriam. Me lembro de seus dedos apertando os botões do teclado, ou do gravador... nunca com o indicador e sim com o mediano. Este gesto era característico, e mostrava toda uma delicadeza que ele tinha em relação às coisas em volta. Delicadeza no pegar. Delicadeza no tratar. Delicadeza no sentir e existir. Mas quando era pra pegar no pesado, sua mãos pegavam na enxada, consertavam telhas quebradas, tiravam espinhos de ouriço da boca de cachorro, carregavam caixas de som (não esqueça que ele morava numa casa, com floresta atrás, e ele é quem cuidava de tudo). Valentes, se metiam em qualquer combuca. Com perfeição, pois era um perfeccionista. 

Não raro, acontecia de se machucar e elas ficavam marcadas . Dias antes de morrer, ele me perguntou se eu sabia como disfarçar umas manchas que estavam em suas mãos, pois estava fazendo show direto e não queria aquilo tão aparente... lembro disto comovida... Com cuidado, passei uma base facial, e ficou uma beleza, sumiu tudinho. Dei-lhe o frasco, e ele usou por mais um fim de semana... e depois... ele se foi.


Sentimento estranho. É tão real! uma cena tão habitual, a gente sentada junto tocando. Coisa que se repetiu tantas, tantas vezes nestes quarenta e dois anos. Tão familiar. Como a claridade do dia, e depois vem a noite. Coisas que fazem parte de minha vida, coisas com as quais me entendo, coisas pelas quais compreendo o mundo, e agora não compreendo é nada. Sentido? nenhum. Muito difícil viver sem sentido, sem lógica, sem entender. Tão estranho olhar estas fotos que me apareceram assim, por milagre, sem mais nem menos, quando eu pensava que nunca mais iria ver material novo dele, que o que tenho dele agora é o passado dentro de mim, eis que de repente me vem um presente (passado-presente-passado-presente), e eis que ele me aparece, exatamente como fosse uma encarnação e sinto-o vivo, sabendo-o morto. Eis que, neste dia gelado de um inverno que começou em fins de maio, sua lembrança me penetra e me aquece.


Hoje, dia 12 de junho, faz cinco meses.







1 comment:

aragaofatima said...

Minha flor, eu que sempre fui dramatica de natureza dizia p/ o Beka quando eu tinha uma dor de cabeça 'acho que vou morrer' e ele respondia: tu és eterna ,não morrerás nunca! eu só entendi isto,anos depois da morte dele (em 2011 faz 30 anos) pois os que amamos ficam impressos no coração...beijos da amiga Fátima.