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Escrever escrever escrever. Dedos batendo rapidamente no teclado, palavras se atropelando na cabeça, brigando pra quem vai sair primeiro, vontade de não parar mais, e ir sem pensar. Deixá-las sairem, mesmo que não faça o menor sentido. Varar a noite, raiar o dia, e ainda assim, continuar. Escrever pra entender. Entender o que sinto, e que não entendo porque não tem palavras, e escrevendo sai no papel, e daí vira coisa que dá pra entender.
Se não for isso, então é nada. Silêncio. Esperar a musa inspiradora bater na minha porta da percepção, esperar "baixar"... e quando que será isto? tem data? é certo? pode demorar dias, meses, anos.
Não. Escrever tem que ser quase que diário. Como comer. Dormir. É tão necessário, e quanto mais frequente é, mas flui a cada dia. Aliás, como tudo na vida. Se fico um tempão sem escrever, posso até viver bem, sem precisar, ocupada em viver o resto, mas viver incompleta. Será que existe o "completa"? acho que sempre vai ficar faltando alguma coisa. Escolher o que fazer, quais são as prioridades?
Comecei escrevendo à mão, com uma letra caprichada ainda criança, depois continuei na adolescência, e depois continuei. Adorava escrever cartas. Escrevia milhares e recebia milhares, ainda desenhava em volta, às vezes no envelope, ia no correio, colava uns selos às vezes lindos da fauna, flora, outras vezes feios e sem graça, mas sempre coloridos. Era legal quando havia vários pra escolher. Fazia estoque, pra ter sempre uns à mão, em caso de emergência.
Esperar pelas respostas recheava os meu dias. Geralmente de pessoas distantes, de outros países, de outras cidades, mas também daqui mesmo. Guardava todas, eu tinha um baú só de cartas, separadas por anos em sacos plásticos. Quando mamãe morreu, poucos meses depois me deu uma coisa de jogar muita coisa minha fora, e nesta foram as milhares de cartas. Salvaram-se umas poucas, que guardo até hoje.
Depois ganhei uma máquina Erika alemã usada mas em perfeito estado, e foi amor à primeira vista. Negra, pequenininha, vinha numa maletinha compacta com design perfeito. Sei lá, era uma das primeiras fabricadas, era uma jóia. Onde eu ia, levava minha companheira insubstituível. As letras do teclado eram redondonas, a letra preta com fundo branco, e negra negra negra. Gostosa de teclar, fazia um barulho delicioso, bem primitivo. Depois eu trocava a fita quando ficava gasta, eu gostava daquela bicolor, preta e vermelha, pra colorir o texto com sentimentos. Fiquei anos com ela, era eu e ela pra cima e pra baixo, durante o dia ela do meu lado, durante a noite comigo na cama, não podia mais viver sem ela, ela lia meus pensamentos, me completava.
Mas eis que numa viagem, pondo as malas dentro do carro, o Ranulfo foi me ajudar, e colocou tudo MENOS a bichinha, que ficou sozinha abandonada esquecida na rua. Imagino como tenha sofrido, imagino todo o seu pavor de ver o carro se afastar e ela lá à mercê de vândalos. Só fui me dar conta quando chegamos na Lagoa das Lontras. Que depressão. Que porre tomei. Tinha perdido minha companheira...
Minha letra então não era mais tão caprichada e tinha uns garranchos, umas desequilibradas, umas impaciências, ranhuras e incompreensões gráficas. E a transmissão entre o meu pensamento e a página escrita era lenta demais, a mão não acompanhava a idéia. Doía. Tinha me viciado na minha Erika.
Depois fui trabalhar na Europa, onde acabei morando por anos, e sem a Erika ou qualquer substituta, pois vivi na estrada, indo de uma cidade pra outra. Vida cigana que nos ensina que quanto menos se levar, mais vazia fica a mala, mais alto se voa, mais longe se vai. Quando de volta ao Brasil, ganhei uma Olivetti Roma (?) de aniversário, era cinza claro e um vermelho tijolo, e apesar de não ser a minha adorada, foi uma mão na roda, voltei a escrever.
Aqui e agora, computadorizadíssima, retomo este prazer que nem sempre é tão prazer, às vezes requer coragem, às vezes cabeça, às vezes tempo, às vezes saco. Mas o ato de escrever sempre tem um final feliz pra quem escreve. Acho.